Opinião
A degradação da verdade
A qualidade da informação de que dispomos funciona como barómetro da sustentabilidade e resiliência da democracia.
A universalização das redes sociais tem vindo a ganhar destaque no debate público, em grande parte devido à cada vez mais evidente utilização destas plataformas por agentes políticos e económicos como meio de influenciar e condicionar comportamentos, opiniões e decisões. Mais recentemente, a pandemia trouxe-nos o medo do vírus, a angústia da incerteza sobre o futuro, a crise económica, a frustração de expetativas de vida, o confinamento físico e social, a alteração de rotinas, bem como a necessidade de procurar respostas para realidades e contextos até agora desconhecidos.
Foi perante esta conjuntura que nos últimos meses se multiplicaram fenómenos como a disseminação de informação imprecisa, incorreta ou até deliberadamente falsa. Será, porventura, o produto de uma menor exigência com o rigor na análise da informação, de um extremar das posições assumidas pelos indivíduos e de uma preocupante tendência para a interpretação de factos descomprometida da necessidade de sustentação dos mesmos.
Esta é uma realidade preocupante que nos desafia, num primeiro plano, enquanto sociedade, mas é também um fenómeno que nos confronta enquanto indivíduos e que nos coloca perante dificuldades idiossincráticas e conjunturais nem sempre óbvias.
Enquanto conjunto de indivíduos (institucionalmente organizados ou não), que vive partilhando regras, objetivos e valores, a resposta ao fenómeno da desinformação e a mitigação dos seus efeitos só é possível através de uma atuação transversal e concertada
É relativamente fácil exigirmos às entidades privadas que gerem plataformas eletrónicas a solução óbvia da autorregulação e da monitorização da veracidade do conteúdo que veiculam. Contudo, para além de ineficaz, é intelectualmente limitado circunscrevermos o exercício a essa única solução.
Nesta matéria, afigura-se essencial reconhecermos a importância da missão dos meios de comunicação social formais. Não há regra sem exceção. Todos conhecemos meios de comunicação social mais ou menos competentes, muito ou pouco rigorosos, nada ou pouco parciais. Acontece que o institucionalismo destas organizações, o seu compromisso deontológico e a regulação da sua atividade são salvaguarda de que os órgãos de comunicação social formais constituem o pilar da liberdade de informação que a Constituição consagra e que a sociedade deve proteger. Esta preocupação assume especial relevância face à crescente disseminação e normalização dos ataques e tentativas de descredibilização que os agentes do caos deliberadamente têm vindo a instigar.
Acredito, contudo, que é num plano primário que a sociedade encontra a resposta estrutural para o problema da desinformação. Os contextos sociais determinam os desafios que as diferentes gerações enfrentam. Os jovens de hoje irão crescer e formar a sua personalidade (individual e social) enfrentando as realidades e os desafios próprios dos tempos que vivemos – o terrorismo e o medo, os smartphones e o imediatismo, as redes sociais e a gestão das expetativas.
A resposta da sociedade à desinformação e a solução para controlar os seus efeitos terá sempre de partir das escolas e das famílias. As escolas e as famílias desempenham uma função social basilar na formação dos indivíduos e têm subjacente um conjunto de deveres que lhes exige a capacidade de reconhecerem estas novas realidades, de identificarem os respetivos desafios, de se adaptarem em função dos mesmos e, dessa forma, formarem os jovens em (e para a) liberdade. A liberdade dos cidadãos será sempre tanto maior quanto mais conscientes e (bem) informados estiverem. O desafio passa por sermos capazes de interpretar a informação que nos rodeia. Se em momento algum da nossa existência tivemos tanta informação disponível e de acesso tão fácil, verificamos também que nunca houve tantas tentativas de manipulação e condicionalismos da mesma.
Reconhecer o problema obriga-nos, enquanto sociedade, a adotar comportamentos que permitam dotar os cidadãos (principalmente os mais jovens) dos mecanismos necessários para formarem e desenvolverem personalidade cívica em contextos de desinformação. Contudo, esta abordagem educativa não poderá deixar de privilegiar também uma vertente que é atualmente subvalorizada e que está relacionada com a forma como cada indivíduo lida com a informação que recebe e os vícios que normalmente condicionam a interpretação da mesma.
A educação assume-se então como o elemento de transição daquilo que é o contexto e o desafio coletivo da nossa sociedade de (des)informação para o plano individual com que cada um de nós se depara e que muitas vezes é esquecido em detrimento do debate do desafio comum. É essencial que os indivíduos sejam capazes de compreender a relação que mantém com a informação que os rodeia.
Recordo uma entrevista feita recentemente a uma médica, no contexto da pandemia, sobre o tema da desinformação na área da medicina. Quando questionada sobre algumas teorias que circulam atualmente sobre o vírus e os respetivos métodos de tratamento, a resposta foi de tal forma sincera que soou a desabafo: desconfiava sempre de quem tem demasiadas certezas e que ela própria (enquanto médica e especialista da área), tinha, isso sim, muitas dúvidas.
Pessoalmente, tenho poucas dúvidas que é melhor ter dúvidas do que ter certezas. Porque a dúvida faz-nos (ou deveria fazer) percorrer um caminho. A procura de uma resposta assente numa dúvida conduz mais facilmente à veracidade dos factos do que a imposição de uma resposta assente numa certeza. Cabe ao indivíduo desafiar-se e ser capaz de perseguir as suas dúvidas em busca de respostas e evitar o conforto do (suposto) adquirido, colocando em causa as suas próprias certezas com ainda mais entusiasmo do que o faz relativamente às certezas alheias.
Outro desafio está relacionado com os mecanismos que, ainda que inconscientemente, o ser humano tem tendência para desenvolver e que limitam a sua capacidade analítica. Seja pela preguiça de ler ou ouvir opiniões diferentes, pelo pouco hábito do confronto (saudável) de ideias que culturalmente não temos, pelo conforto da aceitação da coincidência dogmática, pela necessidade de pertença a um grupo ou até pelos algoritmos matemáticos que condicionam a nossa vida virtual aos nossos interesses. Somos constantemente empurrados para a informação que queremos.
A este respeito, é útil recorrermos à Psicologia (área da qual sou mero entusiasta), enquanto ciência que se dedica ao estudo dos processos mentais. No âmbito do estudo das falhas lógicas sistemáticas ou das interpretações irracionais, existem dois fenómenos relevantes para o efeito. O ‘raciocínio motivado’ é um fenómeno relativamente simples de se identificar e consiste na predisposição para aceitarmos com muito mais facilidade a informação na qual já acreditamos ou na qual queremos acreditar.
Mais complexo (e traiçoeiro), o denominado ‘confirmation bias’ pode ser descrito como a tendência que temos para procurar e interpretar a informação de forma a que esta confirme uma ideia ou preconceito. O exemplo de escola utiliza a figura dos agentes políticos e a tendência automática que temos para discordar ou mesmo desconsiderar uma ideia, proposta ou argumento apenas porque quem a transmite é alguém que está nos antípodas da área política com a qual nos identificamos. Ou seja, quando temos determinada opinião sobre alguém e sobre as ideias que defende, temos tendência para interpretar qualquer nova informação relacionada com essa pessoa no sentido de confirmar a ideia que já tínhamos formada. Tanto o ‘raciocínio motivado’ como o ‘confirmation bias’ são exemplos de mecanismos mentais com evidência cientifica e que revelam a importância de nos desafiarmos constantemente enquanto recetores de informação.
Enquanto indivíduos, devemos aprender a lidar com as dúvidas (com as que seremos capazes de esclarecer, mas também com aquelas para as quais não encontraremos ou não existem respostas). Não devemos ter receio de desafiar as nossas próprias certezas. Temos de saber compreender e questionar as interpretações que, embora muitas vezes de forma inconsciente, fazemos. A forma de nos relacionarmos com a informação que nos rodeia influencia diretamente o nosso compromisso com a verdade.
A pandemia que enfrentamos revelou-se o cenário ideal para o crescimento e sedimentação da sociedade de desinformação. Esta realidade, que atingiu já proporções preocupantes, apenas pode ser revertida através de uma abordagem transversal. Do lado da sociedade, a exigência de autorregulação e a valorização dos órgãos de comunicação formais assume-se como estratégia relevante, mas que jamais poderá desconsiderar a importância da função que as famílias e as escolas assumem na formação cívica. No contexto individual, cidadãos com formação orientada para um contexto social de desinformação, deverão ser capazes de desenvolver mecanismos de autoconhecimento, exigência e rigor relativamente à informação que os rodeia. Se a degradação da verdade ameaça a democracia que ambicionamos enquanto sociedade, devemos responder através de estratégias comuns. Quando a degradação da verdade ameaça a liberdade de cada um, cabe-nos, enquanto indivíduos, adaptar para evoluir.