Opinião

A NOSSA VINDIMA
No início do Verão a Paula e o Luís Queirós fizeram-me um pedido. Pretendiam levar alguns colaboradores da sua Fundação – Vox Populi – a uma vindima no Douro. Como era obrigatório colaborar com estes Amigos, comecei a idealizar a campanha nalguns cenários rurais: Meda, Barca de Alva ou na minha terra Natal. Só que aqui as uvas eram poucas para a multidão que pretendiam mobilizar (cerca de 50 pessoas, com crianças incluídas).
Confrontados com estas hipóteses não hesitaram e escolheram Mata de Lobos, talvez por aí se poder recriar uma vindima à moda antiga, embora já sem alguns dos condimentos típicos, como o carro de bois ou de machos com os pipos alinhados no tabuado.
Marcou-se a data para essa aventura: 21 de Setembro. Preparou-se o evento com tempo. O autocarro levaria a comitiva na sexta-feira à tarde até Almeida, onde pernoitaria. Outros entusiastas da jornada juntar-se-iam ao grupo no dia seguinte. A ASTA participaria com uma dezena de companheiros.
O serviço das refeições estava condicionado pelo Boletim Meteorológico que anunciava chuva para sábado. Nesse caso, tinha de se prever fazê-lo dentro de casa e não ao ar livre como se pretendia. Peritos na matéria certificariam a qualidade dos alimentos, bem como a mão – de – obra necessária.
No sábado, à hora marcada, o autocarro parou na linha de partida. Era perceptível o entusiasmo reinante entre os intervenientes. O tempo, que trouxera umas bátegas de madrugada, amainara. As previsões mais pessimistas não se cumpriram e até apareceram uns finos raios de sol a furar por entre as nuvens. Mas toda a gente estava preparada para enfrentar a intempérie se fosse caso disso.
A força de trabalho foi distribuída por três grupos: o adstrito ao serviço de restaurante, o que se direccionava para a vinha mais afastada e com acessos difíceis (Para este local, encostado às arribas do rio Águeda e com terras espanholas à vista, seguiram de tractor ou em jipes os mais jovens e afoitos). Na vinha do Vale da Horta, que fica perto e tem bom caminho, ficaram os entradotes na idade ou que sofrem de mazelas osteoarticulares. Todos devidamente equipados com tesoura e balde.
Pelas 11 horas a vindima estava feita. Os relatos da faina davam conta da boa disposição reinante por todo o lado. Quem estava próximo do Águeda até teve direito à visita de um drone espanhol que se fixou sobretudo no artista que apanhava as uvas, ora de joelhos, ora a arrastar-se pelo chão.
Concluída a tarefa, as comitivas juntaram-se no Vale da Horta para seguirem em caravana colorida para a povoação. Descarregadas as uvas, verificou-se que o lagar era pequeno para tanta oferta de pés, pelo que se optou por esmagá-las com máquina. Até serem espremidas e o mosto expelido ninguém abandonou o palco. Assistiram ainda a uma sangria, feita pela Helena, para obter uma pequena quantidade do sumo de uva que, adicionado a aguardente, dará uma apreciada geropiga dentro de semanas.
Pelas 12 horas o pessoal foi-se aproximando do improvisado restaurante, mas com uma organização impecável, num ambiente calmo e tranquilo. Enquanto se roíam umas maçãs, alguém contou um total de sete dezenas de comensais. A tranquilidade do chefe Eurico, superintendente do sector da cozinha, esvaziava tensões e punha ordem nas hostes. Ao núcleo duro da confecção e do serviço, juntaram-se outras pessoas para ajudar nalgumas tarefas, como para fazer saladas com produtos de Casegas (tomate coração de boi, alface, pimentos e cebola).
O Márcio tinha a seu cargo as grelhas, uma para assar sardinhas e pimentos, a outra para a carne de porco e os enchidos (com a marca de Dom Carlos Ferro). O contributo deste Amigo foi muito mais longe, pois presenteou-nos com duas monumentais bôlas de caça e um tacho enorme de sopa Beirã, em cujo caldo espesso boiavam pedaços de carne, macarrão, feijão encarnado e couves.
Em cima da mesa, as rodelas de enchidos (farinheiro, chouriça e alheira) alternavam com as fatias de queijos. O pão, ainda quente, era do melhor. Ninguém resistiu às entradas. Diversos apreciadores disputavam bocados de fígado grelhado acabados de chegar, temperados com azeite, alho e salsa. Logo que o pitéu de caça chegava às papilas gustativas havia bocas a soltar exclamações.
Foram servidas as sardinhas e os nacos de carne grelhados. Mas antes, havia muita sopa para comer. Em fila indiana, com a malga e a colher na mão, todos se dirigiram para o panelão. Nem os jovens a dispensaram! A partir daí, cada um lançava a mão ao petisco que mais apreciava, porque a diversidade imperava.
Na mesa das bebidas só estavam alinhadas garrafas do palhete biológico, vindo da adega ao lado. Tornava-se escusado acenar com vinhos de marca, porque a escolha tornou-se óbvia.
Com tanto salgado, havia quem apostasse que os estômagos não comportavam outros carregamentos. Qual o quê! Ninguém passou ao lado dos bolos, sobretudo da bôla parda e das filhós do Joaquim. Entretanto, o café que as garrafas térmicas mantinham quente começou a ser servido.
Depois deste lauto almoço alguns ficaram tentados a encostar a cabeça num qualquer apoio. Mas isso estava fora de causa, porque se arriscavam a perder o passeio a Barca de Alva, alongado até Freixo de Espada à Cinta.
Nesta viagem, o autocarro ia pesado, com mais passageiros e já com a plataforma cheia dos deliciosos produtos da terra, acondicionados para chegarem intactos a Lisboa (Caixas com uvas, figos, maçãs, peras, marmelos, pimentos, tomates, cebolas, batatas, melancias, abóboras e garrafões de vinho e azeite).
Quem viaja por esta estrada obriga-se a parar a meio caminho entre Escalhão e a Barca, no miradouro da Sapinha, para apreciar aquele anfiteatro único, enxameado de oliveiras e amendoeiras. Lá no fundo, o abraço do Douro com o Águeda, selado com um beijo de morte para este último, pede meças ao que de mais belo existe na natureza.
Fiz de cicerone em todo o percurso. As sabor do balouçar do autocarro pelas muitas curvas, relatei factos, contei histórias, vividas ou ouvidas, recordei lendas, apontei marcos e referências históricas.
A estrada ziguezagueante da Barca até ao Penedo Durão tornou-se um pouco penosa, porque o curvar do autocarro agitava as barrigas repletas. Por outro lado, o São Pedro, que até aí fora colaborante, castigou-nos com chuva forte e vento cortante naquele itinerário. A linda paisagem ficou subitamente encoberta por bruma e, mesmo que houvesse coragem para chegar ao ponto nevrálgico do miradouro, pouco se poderia observar. O Sol só reapareceu envergonhado quando, de regresso, passámos a ponte para a Beira Alta. Houve quem exclamasse que esta província é única…
Fez-se escala em Escalhão, onde se deu uma corrida à água das pedras. Com pena nossa, não apareceu ninguém para nos abrir a porta do museu etnográfico, mas a prestável Alice Pacheco proporcionou-nos uma visita à igreja.
Pairava no ar o negrume da noite e havia quem desejasse chegar depressa à Mata de Lobos. Porém, alguns mais temerários insistiram para que se desse um pulo até Castelo Rodrigo. Assim foi! Com o Posto de Turismo já encerrado não tivemos direito a visitar o Palácio de Cristóvão de Moura, mas para quem não conhecia este marco da portugalidade ficou com uma ideia geral desta aldeia histórica.
O jantar, servido no mesmo espaço, foi mais do mesmo. Os comensais voltaram a não dispensar a excelente sopa, até porque o tacho ainda ia a meio. No entanto, estava reservada mais uma surpresa gastronómica, preparada pelo Carlos Ferro: uma fritada de coelhos bravos feita pelo Márcio em plena sala. Mais uma iguaria de arromba!
O autocarro estava à porta, pelas 22 horas, para levar a comitiva para Almeida – o programa do dia seguinte obrigava a despertar cedo.
No domingo toda a gente acordou bem-disposta. Após o pequeno – almoço aconteceu uma visita guiada às muralhas, conduzida pelo Luís Queirós. Depois, a comitiva orientou-se na direcção da Meda, com passagem por Figueira de Castelo Rodrigo e Vila Nova de Foz Côa. Voltei à minha tarefa de guia turístico.
O programa na Meda consistia numa visita à ViniLourenço, uma adega moderna, no Poço do Canto. Ali se produzem anualmente umas centenas de milhares de litros. Fomos recebidos pelo Jorge, seu proprietário, que nos acompanhou no almoço em Cancelos, no despretensioso café do Manuel Almeida. A esposa deste e Telma, a mulher do Jorge, foram as cozinheiras de serviço.
Antes de usufruirmos do luxo de saborear mais uma esplêndida sopa de grão com hortaliça e dum delicioso borrego cozinhado na panela de ferro, foram servidos queijos da região e enchidos que se equiparavam na qualidade aos do dia anterior. Não há adjectivos para classificar o guisado, bem como a salada de alface e tomate criados na horta anexa à casa. As sobremesas, onde pontificava o arroz doce e a mousse, eram divinais. Tudo regado com os afamados vinhos da adega.
Para acompanhar o café foi ofertado um vinho do Porto caseiro, jorrando directamente do garrafão. Quem já conhecia este produto saboreou-o de novo; quem nunca tinha bebido, brindou em delírio. O que restou da embalagem seguiu para Lisboa, ostentado como mais um troféu da jornada.
Como tudo o que é bom acaba depressa, antes das 16 horas já o autocarro se fazia à estrada no regresso a Lisboa. No rosto dos participantes nesta jornada notava-se uma grande alegria e o desejo de voltar. Talvez para a apanha da azeitona – os ramos das oliveiras, carregadas dos pequenos frutos ovais, despertaram esse apetite. Não devem saber que, durante o Inverno, a inclemência do clima naquela região torna problemática esta faina agrícola. Porém, muitos voltarão na Primavera, estou certo disso, para ver as amendoeiras enfeitadas com lindas flores.
Quem, pelas 20 horas, passasse pela rua Professor Dias Amado, nas Telheiras, e assistisse ao esvaziamento do autocarro, terá pensado que ali tinha nascido um concorrido mercado de produtos agrícolas.