30 Mai 20 | Sergio A. S. Almeida - Engenheiro civil, empresário // São Paulo, Brasil

AS EMPRESAS AÉREAS DEVEM SER SOCORRIDAS PELOS GOVERNOS?

Sim, devem. Mas em termos.

Devem, para proteger centenas de milhares de empregos no mundo inteiro e para manter de pé uma indústria fundamental e estratégica, da qual nenhum país pode prescindir, seja de grande ou pequena dimensão territorial.

Não devem, no entanto, fazê-lo com empréstimos governamentais, ou de bancos públicos, com juros subsidiados, o que penalizaria, uma vez mais, o erário público e, em última análise, toda a população contribuinte, inclusive os mais pobres, que pouco ou nada se utilizam deste meio de transporte.

No caso do Brasil, e de muitos países, as grandes empresas aéreas têm como seus principais acionistas indivíduos ou famílias que podem suportar os problemas derivados desta crise sem precedentes, sacrificando parte dos seus lucros auferidos em épocas recentes, em que as empresas foram muito rentáveis, não só pelo alto volume de vendas que levaram a, pelo menos, uma década de aviões  lotados, mas também pelo endurecimento das regras em relação aos passageiros, sempre contrárias aos interesses financeiros dos mesmos.

Passageiro frequente durante cinco décadas, com cerca de 15.000 horas voadas pelo mundo inteiro, acho que fui testemunha viva de como se desenvolveu esta indústria neste longo período. Inegavelmente, tive muitas experiências inesquecíveis, cada vez mais raras hoje em dia, mas também algumas que me marcaram negativamente como, por exemplo, ao aterrar em Miami numa certa manhã e o comandante do avião informar aos passageiros que a companhia aérea, americana, estava fazendo o seu último voo, pois acabara de ter a sua falência decretada. O meu bilhete aéreo que deveria cobrir uma extensa viagem pelos Estados Unidos acabara de virar pó! Outras, do ano passado, incluíram uma viagem de Barcelona para San Sebastian, na Espanha, pela Vueling, empresa low cost da Iberia, onde todos os quase 200 passageiros chegaram no destino sem as malas – sim, no avião não foi embarcada uma única mala! Duzentos passageiros tiveram que se enfileirar junto ao guichê da companhia para fazer a notificação de extravio de mala, o que demorou cerca de quatro horas para que todos fossem atendidos, após um voo de menos de uma hora. E as malas demoraram três dias para chegar aos destinatários. O reembolso das despesas básicas, no meu caso € 50 gastos na compra de artigos de higiene pessoal, foi solicitado pelo único canal disponível, via site da empresa. Desnecessário é dizer que até hoje, mais de um ano depois, nenhuma resposta recebi. Ainda no ano passado, viajei a trabalho com um amigo de São Paulo a Lisboa que, infelizmente, teve que antecipar a sua volta, por razões médicas. O custo da antecipação da sua viagem, em classe econômica e apenas num sentido, custou muito mais que toda a passagem original, nos dois sentidos, em classe executiva.

Nestes cinquenta anos, vi muitas empresas aéreas terminarem melancolicamente, por diversos motivos, de onde se sobressai a má administração. A Panair do Brasil encerrou suas atividades nos anos 1960, forçada pelo governo da época, numa operação até hoje mal explicada. A VARIG, outrora orgulho do Brasil, certamente encerrou suas atividades por administração deficiente, apesar de ter toda a proteção e preferência do governo na compra de passagens e outras benesses. Mas, uma empresa com uma diretoria composta por quatro ou cinco dezenas de membros, famosa pelas gentilezas que oferecia aos poderosos de plantão, até que prosperou por muito tempo. Há ainda o caso da Transbrasil, da VASP, da Avianca e de outras de menor porte…Na área internacional há a PanAm, a Braniff, a TWA e muitas europeias que só não quebraram porque eram estatais e o governo manteve-as vivas, artificialmente.

Hoje, a maior parte das companhias aéreas é de capital privado – no Brasil são todas – ou com participação do Estado na sua composição acionária, muitos detentores da chamada Golden Share, mas quase sempre afastados da administração da empresa. É, por exemplo, o caso da TAP, de Portugal, e outras.

No Brasil, o mercado que melhor conheço, a rede aérea nacional é suprida por três grandes companhias aéreas – LATAM, GOL e AZUL – além de um número não muito grande de empresas regionais, de muito menor porte. Não há abertura no país para a operação interna, por parte das empresas internacionais. As poucas empresas low cost internacionais de médio e longo curso que por aqui aportaram, ou já abandonaram as suas operações ou aderiram aos altos preços das congêneres brasileiras. Além do mercado doméstico, as três acima referidas disputam o mercado internacional, sendo que a maior delas, a LATAM, no dia 26 de maio de 2020 entrou com o pedido de reorganização financeira nos Estados Unidos, conhecido como Chapter Eleven. As outras duas, GOL e AZUL, iniciaram as suas atividades com a proposta de operarem como low cost, mas nunca concretizaram este conceito. Todas têm preços similares, altos, mantendo-se, no entanto fiéis ao conceito de baixo custo somente no que oferecem aos passageiros, a bordo ou em terra, especialmente se você tiver a desventura de ter que falar com o call center de alguma delas. Prepare-se para escutar um longo período de música irritante, para no final não conseguir resolver o seu problema.

Nas últimas duas ou três décadas, a maior parte das empresas aéreas internacionais, e as brasileiras não são exceção, têm tornado a vida dos seus passageiros cada vez mais difícil, com regulamentos que só suprimem os direitos dos passageiros, quase sempre apoiados pelos políticos e com um mínimo de análise crítica por parte da mídia tradicional, que não quer ferir os interesses de seus grandes anunciantes.

Até a introdução generalizada de computadores nas operações de terra das companhias aéreas, e a dos famigerados algoritmos de demanda e oferta, os aviões ofereciam uma, duas e, posteriormente, até três classes de serviço. Em cada classe, o preço era mantido constante até o avião ficar lotado ou partir. Não haviam tarifas diferenciadas numa mesma classe de serviço, que variam de preço a cada dia, ou até mesmo a cada hora, sempre para cima. Mais, se eu quisesse mudar a minha reserva, fosse antes de iniciar o mesmo depois de iniciado o itinerário, o custo era zero, bastando que houvesse lugar disponível no voo desejado.

Hoje, se eu comprar uma passagem com, digamos, seis meses de antecipação e desejar mudar algum trecho dentro deste período, ou mesmo já com o itinerário iniciado, a passagem tem que ser reemitida e calculada a diferença de tarifa para o itinerário inteiro, que nunca é para menos, sempre para mais, e adicionar também uma multa.  E se desisto de viajar, aviso à companhia aérea com semanas ou meses de antecedência e peço o reembolso do valor da passagem, uma gorda fatia do que paguei é retida, em muitos casos até a totalidade. Ora, em nenhum outro setor da economia que eu conheça ocorre isto – financiar a custo zero uma empresa, pagando pelo serviço que, por algum motivo não será prestado, e ainda por cima não receber o seu capital de volta.

Aos poucos, as companhias aéreas começaram a inflar o custo final da passagem aérea. Primeiro, começaram a cobrar pela marcação de alguns assentos, na primeira fila e nas saídas de emergência. Aliás, pelo regulamento, por questões de segurança, nestas saídas só podem sentar passageiros com menos de 60 anos. Tenho 70, e ao comprar assentos na saída de emergência, nunca perguntaram a minha idade – aliás, nem precisavam perguntar, pois mostrar a carteira de identidade ou passaporte é obrigatório, e a sua idade está lá estampada. Depois passaram a vender as fileiras seguintes, chegando ao ponto da GOL vender a metade frontal das cadeiras. Hoje, no ato da compra do bilhete, em muitas companhias aéreas se paga para marcar qualquer assento, até mesmo os menos desejados.

Nos voos internacionais inventaram uma classe econômica plus, “melhorada” e mais cara, que nada mais é que os primeiros assentos da econômica, com um pouquinho mais de espaço para as pernas. Mesma largura, mesmo grau de reclinação da poltrona. Quanta criatividade!

Depois passaram a reduzir o serviço de bordo para, em seguida, começar a cobrar pelo mesmo. Pelo menos paga-se e é bom? Não, paga-se e é pior.

Até alguns poucos anos atrás, ao comprar uma passagem numa agência, a comissão da mesma (10%) já estava incluída na tarifa. Hoje, você paga a tarifa mais a comissão da agência, separadamente.

Agora, balões de ensaio estão sendo lançados ao ar sugerindo que no futuro vão cobrar para o passageiro ir ao banheiro de bordo. Não vou ficar admirado até mesmo porque a TAP, pelo menos, já cobra um absurdo adicional de 1,95% para pagamento de passagens com cartão de crédito, o que contraria a lei brasileira, que proíbe esta prática.

E tudo isso, no caso do Brasil, onde as passagens aéreas já atingiram valores extremamente altos – já paguei por uma viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, ida e volta, o valor equivalente à época a US$ 1.000. Surreal, considerando que são dois trechos de 40 minutos, onde se serve apenas agua, refrigerante ou um café requentado “intomável”.

Não esqueçamos, ainda, a pérola mais recente do descaso com o passageiro: a cobrança pela sua bagagem de porão, com a desculpa que a prática acarretaria um barateamento das passagens, pois todos estariam “pagando” pelo serviço de transporte de malas e nem todos o estariam usando. No Brasil, este conceito amplamente defendido pela ANAC (o que não me parece ser sua função), resultou num engodo grosseiro, quando está provado que as passagens aéreas, depois do início da cobrança de bagagem, aumentaram sensivelmente, não o contrário.

E por fim, vamos falar um pouco sobre os programas de fidelidade que quase todas as empresas oferecem. Até uns vinte anos atrás, eram programas justos, em que após voar uma determinada quantidade de milhas, razoáveis, você tinha direito a uma passagem “grátis”. Hoje, estes programas são simplesmente desanimadores e de pouca utilidade. Nunca há disponibilidade quando você precisa usá-los, por mais milhas que tenha colecionado.

Quando, por “descuido” da companhia aérea você consegue identificar um itinerário que lhe interesse, a quantidade de milhas é simplesmente exorbitante. Já aconteceu comigo de pedirem uma quantidade de milhas cinquenta vezes maior que as milhas correspondentes ao trecho que eu queria voar! Ou seja, para voar de São Paulo a Lisboa, cerca de 5.000 milhas, já me pediram 250.000 milhas a serem debitados do meu programa de fidelidade! E, lembro que estas passagens não são grátis, seus custos estão embutidos em cada passagem aérea que você compra.

Está na hora dos Governos e dos bancos oficiais ajudarem as companhias aéreas, sim. Mas com empréstimos com garantias, a juros de mercado, responsabilizar seus acionistas controladores e exigir deles os sacrifícios que sempre exigiram dos seus clientes – colocar a mão nos seus próprios bolsos!