Opinião
CARTAS de CABO VERDE – AQUI, UM LUGAR ( Parte IV )
Há muitos, como eu, que
têm tudo por fazer, e que apesar de tudo, sentem algum tipo de realização
pessoal. Convenhamos, sempre soube que jamais seria um funcionário
público, que amealharia o meu “pé-de-meia”, e que me reformaria aos sessenta
e cinco, desfrutando da mantinha nas pernas, e abrindo um longo e penoso caminho para a morte.
Quando escrevo a palavra“morte”, vem-me à ideia que ao contrário
da velhice, a morte é uma fatalidade. Sempre, em qualquer momento, em
qualquer parte do percurso.
E como hoje a morte tem a chancela de um quotidiano banal.
Morre-se, como se vai às compras. Lembro-me de assim não ser.
A morte sentia-se, era algo de que não se estava à espera.
Mesmo naquele tempo, em que ser velho, era isso mesmo.
Ser velho.
Uma das mortes que mais senti, foi a de uma velhinha.
Apagou-se com noventa e sete anos. Apagou-se mesmo.
Assim como uma lâmpada que se funde. De um momento para o outro.
A imagem não pode ser melhor. A minha avó materna, era mesmo quem
alumiava a família. Uma luz tão brilhante, uma alegria esfusiante.
Dentro dela cabia um mundo enorme. No coração e na mente.
Uma juventude que contagiava. E, lá está, trazia-a desde o século XIX.
Era levada da breca. Bem me lembro de ouvir por lá, pela
pequena aldeia onde morava, que já casada, esperava que o sono
descansasse o marido, saindo porta fora para a folia dos bailaricos.
À medida que vou crescendo, mais me encontro com ela.
Envergando preto, lenço na cabeça, avental à cintura.
Parece que a estou a ver. Olho para trás e enxergo um mundo de gente numa imensidão de tempo. E a ela, dez réis de gente,
um nunca mais acabar de querer, destacando-se por entre a multidão, e indo avisando “ a mim não me hão-de fechar as cortinas”!
Como que antecipando o outono da vida.
Foi uma avó cheia. Porque de todos.
FIM ( destas cartas )