19 Jun 20 | Francisco Figueiredo - Jornalista/Consultor de Comunicação

CARTAS de CABO VERDE – AQUI, UM LUGAR ( Parte IV )

Há muitos, como eu, que

têm tudo por fazer, e que apesar de tudo, sentem algum tipo de realização

pessoal. Convenhamos, sempre soube que jamais seria um funcionário

público, que amealharia o meu “pé-de-meia”, e que me reformaria aos sessenta

e cinco, desfrutando da mantinha nas pernas, e abrindo um longo e penoso caminho para a morte.

Quando escrevo a palavra“morte”, vem-me à ideia que ao contrário

da velhice, a morte é uma fatalidade. Sempre, em qualquer momento, em

qualquer parte do percurso.

E como hoje a morte tem a chancela de um quotidiano banal.

Morre-se, como se vai às compras. Lembro-me de assim não ser.

A morte sentia-se, era algo de que não se estava à espera.

Mesmo naquele tempo, em que ser velho, era isso mesmo.

Ser velho.

Uma das mortes que mais senti, foi a de uma velhinha.

Apagou-se com noventa e sete anos. Apagou-se mesmo.

Assim como uma lâmpada que se funde. De um momento para o outro.

A imagem não pode ser melhor. A minha avó materna, era mesmo quem

alumiava a família. Uma luz tão brilhante, uma alegria esfusiante.

Dentro dela cabia um mundo enorme. No coração e na mente.

Uma juventude que contagiava. E, lá está, trazia-a desde o século XIX.

Era levada da breca. Bem me lembro de ouvir por lá, pela

pequena aldeia onde morava, que já casada, esperava que o sono

descansasse o marido, saindo porta fora para a folia dos bailaricos.

À medida que vou crescendo, mais me encontro com ela.

Envergando preto, lenço na cabeça, avental à cintura.

Parece que a estou a ver. Olho para trás e enxergo um mundo de gente numa imensidão de tempo. E a ela, dez réis de gente,

um nunca mais acabar de querer, destacando-se por entre a multidão, e indo avisando “ a mim não me hão-de fechar as cortinas”!

Como que antecipando o outono da vida.

Foi uma avó cheia. Porque de todos.

 

FIM ( destas cartas )