21 Jun 20 | Jorge Miguel - Treinador de Campeãs do Mundo de Marcha

Na Selecção Nacional

Ao fim de trinta anos este será o primeiro em que não irei estar com atletas a representar o nosso país.

Em Agosto de 1990 fiz a minha estreia como treinador numa Selecção Nacional de Atletismo ao ir a Plovdiv, na Bulgária, ao Campeonato do Mundo de Juniores.

Quis o destino que a atleta que eu treinava, Susana Feitor, ganhasse a medalha de ouro nos 5.000m marcha e como a velocista Lucrécia Jardim ganhou duas medalhas de bronze a nossa participação foi um sucesso, tendo tido no regresso grande recepção no aeroporto de Lisboa.

Mas nem sempre foi assim.

Ao longo destes trinta anos em que ininterruptamente estive como treinador em selecções nacionais, muitas vezes as coisas não correram bem e a nossa chegada a Lisboa foi feita de forma quase anónima.

Um ano depois, ao ir ao Mundial em Tóquio pude assistir à primeira grande competição de Atletismo a nível absoluto.

Era o tempo do americano Carl Lewis, um atleta fabuloso, mas que nesse campeonato viu o seu compatriota Mike Powel saltar 8,96m e ficar com o Recorde do Mundo no salto em comprimento, isto numa altura em que os atletas africanos já dominavam as corridas de meio fundo.

Antes do Mundial estive com a Susana e grande parte da nossa selecção em estágio em Macau que nessa altura estava sob administração portuguesa e onde, para minha surpresa, quase ninguém falava a nossa língua.

Em Tóquio ia dormir a outro hotel com outros treinadores ou dirigentes, pois não podíamos ficar todos no hotel dos atletas.

O tempo dos grandes campeões portugueses como Carlos Lopes, Fernando Mamede, António Leitão e Aurora Cunha já tinha passado, e Rosa Mota teve aí o seu final de carreira, pelo que os atletas portugueses não se evidenciaram muito, apesar de nessa altura estarem no auge os irmãos Castro, Albertina Dias e outros bons atletas que estiveram em Tóquio.

Dois anos depois em Estugarda, os fundistas portugueses voltaram às medalhas através da maratonista Manuela Machado, especialista em grandes campeonatos.

Esse foi o tempo em que o responsável pelas selecções nacionais era o professor Moniz Pereira.

Ainda me recordo do que ele me disse após a maratona feminina: Oh Miguel, já estamos safos! Quando chegarmos a Portugal com esta medalha da Manuela já ninguém nos chateia.

O professor Moniz sabia do que falava e eu, se ainda tinha dúvidas fiquei com elas desfeitas nesse dia. Aquilo que contava eram as medalhas.

Nos anos seguintes começou o apoio aos atletas através da Preparação Olímpica, mais conhecida por PREPOL.

Com Fernando Mota como presidente da Federação, foi o tempo do novo Director Técnico Nacional, Jorge Vieira, elaborar o documento que serviria de suporte ao apoio aos atletas, tendo os treinadores também direito a apoio económico através das bolsas.

O Atletismo nacional passou então por um período de grande fulgor e não só através das corridas.

As medalhas em Campeonatos do Mundo e Jogos Olímpicos passaram a ser uma constante, até porque tinha começado e era das naturalizações e Portugal também aproveitou.

A seguir a Manuela Machado vieram Fernanda Ribeiro, Carla Sacramento, o velocista Francis Obikwelu e Rui Silva

Os saltadores, com Carlos Calado e depois Nelson Évora e Naide Gomes também passaram a ganhar medalhas em grandes campeonatos, tal como na marcha Susana Feitor e mais tarde João Vieira.

Com o domínio dos atletas de origem africana nas corridas, fossem elas de velocidade ou de meio fundo e fundo, cada vez era mais difícil para os atletas portugueses evidenciarem-se em competições de nível mundial.

Como de quatro em quatro anos havia os Campeonatos da Europa, foi aí que alguns brilharam conquistando medalhas, tais como Mário Silva, Conceição Ferreira, António Pinto, Jéssica Augusto, Dulce Félix, Sara Moreira e mesmo a saltadora Patrícia Mamona e o lançador Tsanko Arnaudov.

Ao longo destes trinta anos em que estive como treinador nas selecções nacionais ao mais alto nível, sempre verifiquei que a atenção (quase exclusiva) da comunicação social, era para os atletas que ganhavam medalhas. Uma atenção obsessiva.

E isso era por demais evidente quando chegávamos ao aeroporto em Lisboa e todos os jornalistas se preocupavam em entrevistar quase só os medalhados.

Ali, o atleta enquanto pessoa, não interessava nada.

Fosse ele branco ou preto, afável ou menos simpático, a única coisa que lhes interessava era o seu valor desportivo, ao ter sido medalhado.

Mas essa atenção não existia em todas as competições.

Na Marcha, todos os anos por altura de Abril ou Maio se realizavam as Taças do Mundo ou da Europa, competições sobretudo colectivas, por países, mas onde existe sempre a componente individual.

Nessas competições vários marchadores portugueses, com destaque sobretudo para João Vieira e a equipa feminina onde pontificavam Ana Cabecinha, Inês Henriques, Susana Feitor e Vera Santos, conseguiram posições de grande destaque, inclusive com títulos mundiais e europeus, e várias medalhas individuais ganhas por qualquer uma destas quatro atletas. No entanto esses brilharetes quase passavam despercebidos na nossa imprensa desportiva.

Sem dúvida que a grande atenção era dada aos grandes Campeonatos de Verão.

Sempre fui contra esse excesso de atenção aos medalhados. Por vezes havia atletas que tinham tido um comportamento excelente e com prestações muito honrosas, mas eram quase ignorados.

Várias vezes, falando com jornalistas, me insurgi contra esse exagero em dar atenção quase exclusiva, aos melhores dos melhores.

Até que surgiu o ano de 2017.

Inês Henriques, uma atleta que eu sempre tinha treinado e há vinte anos andava em selecções nacionais sem que o seu valor fosse reconhecido, conseguiu a proeza de bater o Recorde do Mundo dos 50km marcha e ganhar essa prova nos Mundiais em Londres.

Desta vez, foi ela que se viu envolvida num turbilhão, rodeada de jornalistas que mal a deixavam respirar, e essa situação voltou a acontecer na nossa chegada ao aeroporto de Lisboa, onde ela tinha sido tantas vezes ignorada.

Nesse momento, um pensamento apoderou-se de mim: Se o Mundo é assim, que seja. Por aquilo que lutou, mesmo estando tantos anos no anonimato, não há ninguém que mereça mais este momento do que a Inês.

E senti que se estava a fazer justiça.

Quase sempre integrando as comitivas, estive presente a nível absoluto em,

Seis Jogos Olímpicos;

Quinze Campeonatos do Mundo;

Seis Campeonatos da Europa;

Treze Taças do Mundo e treze Taças da Europa de Marcha,

E ainda em doze campeonatos para juniores e sub 23.

Nessas nossas selecções estiveram muitos treinadores, dirigentes ou outros oficiais, dos quais recordo sua competência e amizade e tendo com alguns deles, aprendido muito.

Ir bem preparado para uma competição onde estão todos os melhores do mundo, não é tarefa fácil.

É por isso natural, que todos tentem ter as melhores condições para o fazer.

Nestes trinta anos que andei com as selecções nacionais, fui vendo que ao lado dos grandes atletas quase sempre vencedores, havia também aqueles a quem as coisas não corriam bem. Eram quase sempre os “coitadinhos” a quem faltavam os apoios.

Tal como a generalidade das pessoas, os atletas não são todos iguais, e por isso ficou gravado na minha memória, um dia, em que um desses atletas que reclamava para lhe darem melhores condições, ouviu como resposta: “Na verdade TU não tem condições”.

É duro ouvir isto.

É duro, mas é a verdade que o Desporto nos impõe.

Ali, por mais que se tente criar situações de igualdade, há sempre alguns que são melhores do que os outros.

E isso leva-me a pensar, se, nos dias de hoje onde tudo se questiona para que haja igualdade entre todos, não deveríamos antes colocar essa questão à mãe Natureza. “Porquê, Natureza, destes a alguns muito melhores “condições” do que a outros?”

“Porquê, Natureza, destes a alguns tantas capacidades e a outros tão poucas. A uns, tanta força e a outros tanta fragilidade?”

Talvez a ciência e os cientistas possam ter uma resposta. Eu, não.