26 Mai 20 | Ricardo Antunes - Economista // Dirigente Público

O Intruso

A nossa vida mudou e a minha também …

De um momento para o outro, ainda atordoados por um ambiente pandémico de espanto e medo, entra pela nossa casa adentro um intruso. Sem ser convidado e sem avisar, cá temos todos, a entrar pelas nossas casas e vidas, um novo personagem de seu nome “teletrabalho”. Para muitos de nós, trazer o trabalho para casa não é novidade, mas neste caso ele entrava a nosso convite e com pré-aviso.

Foi uma “invasão” repentina e sorrateira parecendo uma raposa matreira que nos foi sorvendo cada vez mais o tempo que dispomos. Como o nascimento de mais um filho, o aumento da família, a vivência quotidiana com mais um elemento em casa é, desde logo, um desafio gigantesco. Mas como não há uma sem duas, nem duas sem três, ele apareceu com os seus amigos, ensino à distância e o cuidar a tempo inteiro das crianças. Não sendo suficientemente hercúleo tudo isto junto, há que acrescentar a esta família o meio envolvente de confinamento com as restrições que todos conhecemos e passamos nos últimos meses. O desafio que já era enorme, passou a ser complexo e de um equilíbrio extremamente exigente, equiparado a um exercício de ginástica do mais alto nível. A vivência conjunta implica conciliar a satisfação de necessidades (trabalho, escola, alimentação, exercício físico, …), vontades e temperamentos divergentes de todos os envolvidos, em que emerge o compreensível exacerbamento provocado pelo meio envolvente.

As crianças, como crianças que são, sorriram e rejubilaram por terem os pais a tempo interno para lhes dar os mimos e atenções que todos os pequenotes gostam. Foi sol de pouca dura. Rapidamente, este intruso passou a ser olhado como alguém que absorve e suga toda atenção que os pequenos tinham visto como uma oportunidade única e exclusiva.

Como em todas as relações, os ciúmes assumiram o protagonismo no relacionamento entre todos da casa. A partilha “dói” se o bem a partilhar é escasso e limitado. A cada dia que passa, sente-se no ar o exponenciar das tensões e do stress, impulsionados pelas exigências do trabalho, das crianças, da escola, tudo isto no contexto de restrição de movimentos, é sem dúvida a tempestade perfeita para o surgimento de conflitos e desestabilização.

É nesse contexto que a calma, o bom senso, o equilíbrio e a ponderação devem imperar. Os pais nas suas diferentes personagens de professores, cuidadores, educadores “têm de se juntar” e levar o barco a bom porto.

Esta é a estória do que muitas famílias passaram e ainda estão a passar nestes últimos meses. Quiçá dos maiores desafios no seio das famílias nesta era moderna.

Esta mudança trouxe para a agenda do dia a discussão sobre as vantagens e desvantagens desta modalidade de trabalho. Como em todas as discussões há diferentes opiniões, argumentos e realidades que as sustentam. Importa salientar que as ilações retiradas destes meses de teletrabalho têm subjacente condicionantes, as quais numa normalidade, pré-covid, não existiam, tais como, as que descrevi. O teletrabalho requer foco e foco não se conjuga com multiplicidade de tarefas e atenções.

Agora toda a gente trabalha a partir de casa!

Mesmo os que diziam que nunca seriam capazes nem imaginavam essa realidade, cá estão no meio desta onda do mar.

Para uns é uma iniciação, para outros é a possibilidade de se modernizarem como desejavam. Há benefícios claros no teletrabalho (eu próprio estou a sentir alguns). Há quem diga mesmo que é uma forma de estarmos na vida, que vai criar um “novo normal” com trabalhadores mais produtivos e mais felizes.

O teletrabalho tem vantagens de natureza económica, social, de saúde e ambiental. Permite uma liberdade na organização de tempo das pessoas, uma maior autonomia, uma melhor conjugação com a vida familiar, uma eliminação do tempo perdido nos trajetos entre casa-trabalho, redução de custos nos transportes, menores distrações. Maior liberdade para nos dedicarmos a cultivarmo-nos. A nossa saúde sairá beneficiada com mais tempo livre para nos dedicarmos a uma alimentação saudável e à prática desportiva. Muitos de nós estamos a aproveitar o tempo disponível para aumentar essa prática (atividade física) que, por ora, é mais caseira mas que se espera que a breve trecho seja nos locais mais apropriados para fazer atividade física mais segura e acompanhada (ginásios, piscinas, pavilhões, pistas, campos, …). Já há mesmo muitas empresas a apanhar esta onda e a encorajar os seus trabalhadores para estas formas de vida mais saudáveis. Trabalhadores felizes e saudáveis sem dúvida que serão mais produtivos.

O ambiente é outra vertente que claramente melhorou e pode melhorar com tudo isto. Basta olharmos para a evolução tão evidente do meio ambiente em todo o mundo durante os lockdowns mundiais. Desde os Golfinhos e os cisnes a aparecerem de visita nos canais de águas transparentes de Veneza, o céu azul voltar a trazer a sua luminosidade a muitas das metrópoles mundiais, ouvir o som das passadas de animais selvagens a percorrerem estradas em cidades desertas por este mundo fora, visualizar os Himalaias de pontos nunca dantes olhados. Durante este período de pandemia, as emissões globais de CO2 caíram para o mínimo dos últimos 15 anos, com menos 17 milhões de toneladas por dia em comparação com 2019. Em Portugal, a redução do nível de poluição para no Porto e Lisboa chegaram a 60% e alguns locais a 80%. A nível ambiental, cada passo de melhoria é um grande avanço e urge trabalhar nesse sentido.

A redução de custos dos empregadores é também uma realidade. Com trabalhadores a trabalhar à distância, os empregadores não têm custos de energia, de internet, de espaços de escritório e custos dessas infraestruturas. A multinacional Twitter recentemente lançou a possibilidade para todos os trabalhadores poderem trabalhar à distância ”para sempre”. Esta forma de vida tem demonstrado aumento de produtividade das pessoas em empresas que já há muito têm isto como prática

O teletrabalho traz para dentro das nossas casas não só o trabalho, mas também todas as nossas relações profissionais. E lá estamos nós a partilhar as nossas prateleiras de livros, muitas para decoração, os quadros que mais gostamos, os momentos embaraçosos de quando deixamos a câmara e micro ligados sem o querer. A nossa casa passa ser o escritório, a sala de reuniões, a sala de convívio e um local de visita para todos os que privam nas enumeras video conference ou calls.

Como otimista que sou, olhei para os impactos positivos do teletrabalho, que se me afiguram importantes. Mas, a moeda tem duas faces e, por isso, há que ter cuidado na generalização. Há que atentar na realidade e especificidade das situações.

Aquele que como intruso entrou nas nossas casas sem pedir licença, sorrateiramente, já se tornou parte da família. Será que somos capazes de rejeitar, totalmente e para sempre, este membro da família?

Uma coisa é certa: A realidade mudou e nunca voltará a ser como era.