Opinião
O Ministério Público está obrigado a acusar? Sim, mas não devia estar.
Cada vez mais, os tempos da justiça penal que temos revelam-se incompreensíveis para os cidadãos.
Os Tribunais, e quem lá exerce funções, particularmente os Juízes e os Magistrados do Ministério Público são apontados como os responsáveis.
Frequentemente, são os próprios políticos que acusam tais demoras, reputando-as de incompreensíveis.
Mesmo perante as últimas estatísticas divulgadas, que espelham uma melhoria significativa dos tempos de resposta do sistema judicial, processos há que não se compreendem porque jamais chegam a julgamento.
Nestas breves palavras que agora escrevo, darei conta de algo que muitos desconhecem e que, pelo menos na justiça penal, enquanto não for alterado, constituirá sempre um impedimento para que um processo de complexidade mediana, já para não falar dos de elevada complexidade, possa ter um desfecho em tempo minimamente aceitável.
Vejamos então:
A ) Começando pela expectativa dos cidadãos.
Numa sociedade altamente mediatizada, como é a nossa, a descoberta de um crime com especial gravidade, leva a uma densa e duradoura nuvem informativa que cobre todos os pormenores do mesmo e, emparelhando a informação que consta dos autos com a informação que os jornalistas acabam por adquirir em resultado da sua própria investigação, tudo é oferecido ao público sob a forma de verdade inquestionável.
Resulta daqui, como é humanamente normal, a aquisição de certezas sobre a culpabilidade dos arguidos e a formulação de juízos, que haverão de ser confirmados, ou não, no julgamento final daqueles.
Cada um formula uma decisão, condenatória ou não, e aguarda pelo veredicto final a ser dado pelos Tribunais.
O chamado “in dubio pro reo”, ou seja que todos se presumem inocentes até ao trânsito em julgado da decisão final, embora seja reconhecido como um dos princípios constitucionais basilares do sistema penal, não tem expressão na opinião pública, e o julgamento mediático é impiedoso e gerador de consequências catastróficas para a personalidade de quem é alvo das suspeitas.
Não adianta reforçar as medidas punitivas para a violação do segredo de justiça, arma usada pelo legislador, também para preservar aquele princípio constitucional, importa sim alterar profundamente o nosso sistema penal para que os tempos entre a origem da notícia do crime e o seu julgamento sejam ajustados ao que a sociedade espera e reclama.
Especialmente na criminalidade económico-financeira, envolvendo pessoas que ocupam ou ocupavam cargos de relevo na administração do Estado, ou em empresas de dimensão nacional, ou em associações desportivas com empatias massificadas, as noticias de crimes geram apaixonados sentimentos de justiça que não se compadecem com o tempo de espera do resultado final, levando a uma inevitável descrença no sistema, e mais grave do que isso, nos actores desse mesmo sistema, que se limitam a cumprir a lei com todas as minudências que ela consagra.
- B) Os constrangimentos do sistema.
Como é sabido, após a notícia de um crime, surge o Ministério Público – que no nosso sistema penal nos crimes públicos e semipúblicos (os mais graves), é o único titular da acção penal e que tem o dever de investigar. Para tanto, abre formalmente um processo de inquérito e procura esgotar no mesmo todo e qualquer tipo de suspeita e de indício, concluindo após investigação, pelo seu arquivamento ou pela dedução de uma acusação.
Recolhidos que sejam “indícios suficientes” do cometimento de um crime, e da sua autoria, o Ministério Público não tem qualquer possibilidade de decisão que não seja o acusar o agente do crime.
Todas as suspeitas de crime obrigam o Ministério Público a investigar, o que é justificado, não só pelo princípio da legalidade (grosso modo é o princípio que obriga a apurar todos os comportamentos que possam ter violado normas penais) em que assenta o nosso sistema penal, como também no princípio constitucional que todos são iguais perante a lei, aceitando-se como verdade absoluta que o direito Penal deverá ser igual para todos.
A investigação criminal levada a cabo pelo Ministério Público e pelas polícias que o auxiliam, embora com prazos fixados na lei, demoram tanto quanto for o tempo necessário para apurar todos os indícios que permitam sustentar uma acusação, seja um, sejam mil os crimes cometidos pelo suspeito.
Ora, esta pureza absoluta é uma das característica que identifica o sistema penal português – e outros sistemas penais europeus (com excepção da França) – mas que após os anos 80, tem vindo a ser paulatinamente alterada noutros países, como seja a Alemanha, no sentido de ser mitigada em prol de uma maior eficácia e celeridade nos julgamentos de suspeitos.
- C) A necessidade de revisão do sistema penal
Na verdade, surge como alternativa ao princípio da legalidade, o princípio da oportunidade, pilar dos sistemas penais dos países anglo-saxónicos, os chamados países da “Commun Law”.
Este diferente sistema penal não obriga o Ministério Público a investigar todos os crimes de um suspeito.
O Ministério Público está obrigado a investigar os indícios e procurar a condenação por um, dois, três ou os que forem possíveis de identificar, do agente do crime, mas não de todos os hipotéticos crimes cometidos.
O que se procura alcançar é a condenação do arguido a uma pena que se afigure justa perante a sociedade, ou perante a vítima, e a decisão de acusar o arguido deverá ter em conta, unicamente a oportunidade para o efeito.
Significa isto que um processo-crime, num país anglo-saxónico, pode não ter como desfecho obrigatório uma acusação, o que não significa que o culpado não seja punido.
O Ministério Público nesses países terá que tomar uma decisão, sendo obrigado a ponderar globalmente todas as consequências do processo que tem em mãos, e entre elas surgem como fundamentais, a celeridade do processo e o seu custo para o cidadão.
Nos EUA, por exemplo, está desde sempre consagrado o sistema reputado por “plea barganing” onde o Estado tem a possibilidade de “negociar” com a defesa do arguido, através do Ministério Público, a pena a aplicar ao seu crime, afastando-se assim a procura exaustiva da verdade material inerente à conduta do agente do crime, para se acordar numa verdade formal assente na confissão, muitas vezes obtida perante as evidências recolhidas pela investigação.
As preocupações com os custos para o contribuinte de todo o processo de investigação são uma realidade nos EUA e noutros países anglo-saxónicos, não sendo desejável depauperar os cofres do Estado com milhões dólares para obter uma condenação de uma conduta criminosa que por vezes teve consequências patrimoniais muito inferiores, ou cujo ressarcimento está irremediavelmente comprometido.
Também é usual, e frequente, surgir em sede de acordo de pena, a obrigação do agente do crime passar a colaborar com as autoridades em investigações alheias, mediante a aplicação dos seus conhecimentos específicos que, agora desta forma, passam a estar na disponibilidade das polícias criminais.
O que importa modificar no nosso sistema penal é precisamente o seu enquadramento politico-legislativo, abandonando-se a ideia de que custe o que custar, demore o tempo que demorar, o suspeito arguido terá que ser condenado sempre pela totalidade dos seus crimes, encontrando-se a utilidade do sistema nesta cegueira abstracta, mesmo que se saiba, e sabe-se, que tal comportamento leva ao descrédito da justiça, e aos anseios que as pessoas nela depositam, e que passam por terem uma justiça célere e desmotivadora pela pena que se espera que seja aplicada ao criminoso.
Com um limite máximo abstracto de 25 anos de pena de prisão, como acontece em Portugal, ser um ou serem mil os crimes pelos quais o arguido é condenado, facilmente se percebe a inutilidade da luta pela punição da violação de todos os crimes indiciados em sede de inquérito.
Provavelmente – e que me perdoem os defensores do sistema – a investigação pode ser concentrada nos indícios recolhidos na fase de inquérito, unicamente nos crimes que surjam com elevada clareza probatória, salvaguardando-se assim uma maior possibilidade de êxito em sede de julgamento, com a obtenção de uma condenação célere e exemplar, ou possibilitando-se a negociação da pena sem recurso a julgamento.
Sem querer referir nenhum dos processos mediáticos em curso, todos nós conhecemos alguns que nos permitem demonstrar as vantagens da adopção legislativa futura do princípio da oportunidade, quer porque tais processos jamais encontrarão o seu termo nas próximas gerações, quer porque podiam permitir outro tido de vantagens para o Estado que não apenas a simples e pura punição do suspeito.
Enquanto isso não acontecer, iremos esperar e desesperar pelas investigações altamente complexas e demoradas, a que se sucederão julgamentos intermináveis, e acima de tudo pagar, enquanto contribuintes, os milhões de euros que se gastam na procura da condenação do arguido.