16 Ago 20 | Jorge Miguel - Treinador de Campeãs do Mundo de Marcha

O “Tanganho”

Desde muito novo comecei a ter interesse em conhecer as pessoas e a procurar saber o porquê de terem determinadas atitudes e comportamentos.

No início dos anos sessenta do século passado vivia com meus pais e meus irmãos no Casal do Vale Bom, a dois passos da Marmeleira.

Do lado do sol nascente havia uma vinha e um olival do Sr. José Martins, mais conhecido pelo “Tanganho”, homem de mau feitio que vivia na Marmeleira e sempre que andava na sua propriedade embirrava com toda a gente, de tal modo que todos os vizinhos o evitavam e se alguém lhe chamasse “tanganho” bem podia fugir, pois o homem ficava possesso e muito agressivo.

Um dia abeirou-se de nós aos gritos, assegurando que o nosso cão lhe tinha ido comer o farnel que tinha deixado pendurado numa árvore.

Na verdade, nós tínhamos um cão chamado piruças, mas era um animal de tal modo esperto que nem eu nem os meus irmãos acreditávamos que ele tivesse ido comer o lanche do homem.

O piruças nem gostava de pão, de tal modo que eu tentava tudo para que ele o comesse.

Untava um bocado de pão com manteiga e o piruças lambia a manteiga e deixava o pão. Fazia o mesmo com toucinho, mas o cão apenas lambiscava o sabor do toucinho e o pão ficava lá.

Por isso e perante a insistência do homem, disse-lhe, convicto: “Oh Sr. Martins. Não venha para aqui dizer que o nosso cão lhe foi comer a merenda. Ele nem sequer come pão! Quer ver?”

E acto contínuo, fui buscar um bocado de pão e gritei: “Piruças, toma!”

O que aconteceu a seguir deixou-me incrédulo. O piruças correu para o pão que eu lhe havia dado e comeu-o.

“Isto não pode ser, pensei. O cão nunca comeu pão na vida…”

“Não come, só se não lho derem,” respondeu o Sr. Martins e foi-se embora a resmungar com cara de chateado.

Fiquei tão envergonhado que só me apeteceu bater no raio do cão.

Semanas depois, do alto do nosso casal assistimos a uma violenta discussão entre o Sr. José Martins e o Sr. Joaquim Góis que era o homem que tratava dos bois na quinta do Sr. Noronha, que ficava do lado sul.

A páginas tantas ouvimos os gritos do “Tanganho”: “Oh Sr. Góis! Oh Sr. Góis! Eu tanto se me dá morrer de uma bronquite como de um tiro que o senhor me dê!”

“Ai, é? Então espere aí só um bocadinho…”

E acto contínuo o “boieiro” foi a correr buscar uma espingarda que tinha na quinta para qualquer eventualidade.

Ao ver o Joaquim Góis armado, o Martins começou a correr na pela vinha fora na direcção do olival a gritar desesperado: “Acudam! Acudam! Acudam, que este homem quer-me matar!”

A uma meia centena de metros de distância, nós pouco poderíamos fazer e, sobretudo, pensávamos que o Joaquim Góis apenas queria pregar um susto ao homem que lhe fazia a vida num inferno.

Pouco depois o Góis parou e gritou-lhe: “Então, dizia que tanto se lhe dava morrer dum tiro como duma gripe e agora vai a fugir?” E de seguida pôs a arma ao ombro e voltou para casa a gozar a cena.

Tempos depois, um dia, teria eu para aí uns quinze anos fui apanhar azeitona para o Sr. José Martins, creio que ele teria solicitado ao nosso pai e embora não me recorde, penso que o meu irmão Quim também foi comigo.

À medida que o tempo foi avançando fui conseguindo falar com ele para tentar perceber donde vinha toda aquela raiva.

Para minha surpresa mostrou-se um homem muito culto, com um conhecimento muito acima dos homens rudes que trabalhavam no campo e com quem lidávamos diariamente.

Com o senhor José Martins aprendi o que era o Meridiano de Greenwich, que ele fazia questão de dizer “Greenwick!”, que divide o Globo Terreste entre o Ocidente e o Oriente e que estabelece os fusos horários.

Nós tínhamos estudado isso na escola, mas nesse dia recebi ali uma lição de História e de Geografia.

Soube também que em novo teria andado no Seminário e quando lhe perguntei porque tinha de lá saído não me respondeu, mas consegui ver os seus olhos vermelhos parecendo-me mesmo ver uma furtiva lágrima.

Soube depois pela mulher dele, que também ali andava na apanha da azeitona, que ele deixara o Seminário para se casarem, mas não tinham conseguido ter filhos e não sabiam se o problema era dele ou era dela.

Por momentos lembrei-me de quando era criança e a minha mãe me ter falado em eu vir a ser padre, eu lhe ter dito que quando fosse grande queria casar, viver com uma mulher, ter filhos…Enfim, ter uma família.

À medida que fui sabendo estas coisas do Sr. José Martins, o “Tanganho” como lhe chamavam, comecei a falar com ele e a deixar de ter medo, pese embora a sua agressividade. Comecei a entender porque é que ele reagia daquela maneira.

Depois, quando ia na minha bicicleta e passava perto dele dizia-lhe bem alto: “Olá Sr. Martins!” E ele respondia-me sempre: “Adeus rapaz!”

Com a minha ida para a tropa aos vinte anos, nunca mais soube nada do “Tanganho”. Porém, aprendi, que mesmo as pessoas mais complicadas podem ter razões que explicam certos comportamentos.

Não sei se ele terá ou não deixado algum familiar na Marmeleira. Mas sei, que mesmo sendo o ele dono de uma propriedade, não era homem para andar ali a cavar com uma enxada.

Talvez essa fosse a sua revolta.