Opinião
SÓ SEI QUE NADA SEI
Nesses dias de quarentena forçada, imposta pela COVID-19, estou me sentindo como Sócrates se sentiu há quase 2.500 anos, mas com a diferença de que naquela altura ele pelo menos estava à frente dos seus pares, por ter certeza de pelo menos uma coisa: – de que nada sabia.
Hoje, bilhões tem a certeza que de nada sabem, igualzinho a mim…
Numa época de excesso de informação, quase toda de má ou sem qualidade alguma, a disseminação da dúvida inquieta o cidadão, o deixa atordoado, sem saber a quem seguir, em quem acreditar, como reagir, se vai ter o dinheiro para alimentar sua família, pagar sua renda no fim do mês, cumprir suas obrigações, se vai ter um emprego ou um negócio ainda aberto para manter sua família, quando tudo isso acabar.
Em janeiro, todos nós percebemos o maciço noticiário de uma epidemia concentrada em uma distante e exótica cidade chinesa de mais de 11 milhões de habitantes – maior que qualquer outra da Europa, exceto Istambul e Moscou, da qual a maior parte do planeta nunca havia ouvido falar, inclusive eu. Uma região em que os hábitos alimentares incluem o consumo do pangolim, animal que mais parece resultar do cruzamento de um armadilho com um dragão, do qual também nunca tinha ouvido falar, apesar de ser o mamífero mais traficado do mundo. Afinal, há 1,4 bilhões de pessoas que adoram comer o que se convencionou denominar de vilão da COVID-19. Bem, de repente a minha ignorância se reduziu em dois pontos. Já estava me sentindo dando de goleada no Sócrates…
Nessa altura – nós que sabemos que nada sabemos – tratamos o fato com um misto de curiosidade e (um pouco de) solidariedade; afinal a China não é Europa nem está nas Américas. Então, ficou combinado que estava tudo bem, bastava não ir passar as férias na China e deixar o problema por lá. Eu acreditei nisso, acho que a maior parte de nós também. Como sabemos que nada sabemos, confiamos que os governos dos cerca de 200 países do mundo, espalhados em seis continentes, que a Organização Mundial da Saúde (OMS), e que os grandes centros mundiais que estudam a saúde e as epidemias, saberiam nos proteger, ainda mais que a epidemia estava, naquela altura, circunscrita a uma relativamente pequena região daquele longínquo país. Eles, ao contrário do nosso personagem Sócrates, acham que tudo sabem! Poderosos computadores, capacitados a nos “perseguir” em qualquer lugar esquecido do mundo, nos ameaçando para que tenhamos juízo e paguemos a parcela do imposto devido já há alguns dias, algoritmos einsteinianos, inteligência artificial, nada disso foi capaz de prever o desastre que se abateria sobre o planeta que, por sinal, já estava se delineando após quatro pandemias ou endemias, que marcaram o século 21: SARS, de 2002; gripe aviária, de 2003; H1N1, de 2009; e, Ebola de 2013, espécie de trailer do que aconteceria em 2020.
Na Itália, o carnaval de Veneza, que dura três semanas, só foi cancelado na terceira e última. No Brasil, os governantes incentivaram a grande festa do Carnaval brasileiro, que ocorreu no final de fevereiro, com direito a quase dois meses de pré-carnaval em janeiro e fevereiro e a sua despedida no dia 29 de fevereiro.
O Carnaval de Munique, na Alemanha, que também atrai milhares de turistas e participantes, ocorreu normalmente no final de fevereiro. O mesmo com o famoso carnaval de Nice, França, que dura duas semanas.
Onde estava a OMS para orientar que estas festas populares, com grandes aglomerações, excesso de álcool e outras características fossem canceladas? E onde estavam os respectivos governos, que não as cancelaram, mas as promoveram e incentivaram?
Hoje, nós que só sabemos que nada sabemos, estamos perplexos, em casa, em frente aos nossos televisores, computadores e smatphones, sendo bombardeados com uma infinidade de opiniões completamente divergentes, fazendo com que o cidadão comum se torne ao mesmo tempo refém e órfão da mídia. O único ponto de concordância dos cientistas e médicos, além dos jornalistas e analistas pluritemáticos, que representam a categoria dos curiosos especialistas em todos os assuntos, é que se deve lavar as mãos com a maior frequência possível. Ponto pra nós, cidadãos comuns, que podemos contar com pelo menos uma orientação consensual! Em relação aos pontos onde não há concordância geral, destaco:
1 – Em diversos países, como o Brasil, Estados Unidos, Itália, Grã-Bretanha, estes dois últimos, no princípio da pandemia, só para citar alguns, não há consenso entre os diversos níveis de governo – central, regional e municipal. No Brasil, o Presidente da República não só desdenha e desacredita do distanciamento social, como comparece e incentiva aglomerações de apoio político, onde distribui beijos e abraços, assoa o nariz com o braço e logo após cumprimenta velhinhas, entra em guerra com praticamente todos os 27 governadores estaduais e prefeitos das principais cidades brasileiras, que fortemente recomendam o afastamento social, o encerramento das atividades não-essenciais, o fechamento das escolas e universidades, o uso de máscaras e demais recomendações baseadas na ciência. Na realidade, como pano de fundo, estão as eleições (quase) gerais de 2022. Com isso, cada político tenta desqualificar o trabalho do seu possível futuro concorrente, assumindo posições antagônicas, que só servem para aprofundar a crise e desorientar os cidadãos.
Nos Estados Unidos, cujo presidente Donald Trump é o ídolo e inspiração do nosso presidente Jair Bolsonaro, a situação é muito parecida.
Já na Itália e Grã-Bretanha, posições semelhantes foram verificadas no início da pandemia, mas, felizmente, embora tardiamente, foram revertidas em favor de medidas seguras e que se mostraram efetivas, culminando, por exemplo, com o emocionado pedido de desculpas do prefeito de Milão.
2 – Sobre a medicação comprovadamente eficiente no combate à COVID-19, a mais comentada e mais controversa é a hidroxicloroquina, desenvolvida há cerca de 80 anos e bastante usada na profilaxia da malária e no tratamento crônico do lúpus e da artrite reumatoide. No entanto, seus maiores garotos-propaganda não são os médicos, mas sim os presidentes Trump e Bolsonaro. Por isso, no Brasil, é classificada como uma “medicação de direita”, como se os remédios pudessem ser classificados como de esquerda ou de direita…Surreal, não? Os de direita torcem para que dê certo, enquanto que os de esquerda torcem para que seja um fracasso.
Ao serem divulgadas as primeiras pesquisas, o presidente do Brasil ordenou aos laboratórios das Forças Armadas que se dedicassem quase exclusivamente à produção deste remédio, ao mesmo tempo em que a classe médica se posicionava contra ou, pelo menos, cética. Somente quando dois médicos brasileiros, de grande renome, foram infectados e tratados com um coquetel de drogas que incluía a hidroxicloroquina e, felizmente, se recuperaram, a classe médica passou a ver a questão de forma mais favorável. Por um lado, milhares de brasileiros tomam este remédio diariamente, pelo resto da vida, para o controle do lúpus e da artrite reumatóide, em dosagens não muito menores do que as experimentadas no controle da COVID-19, estas administradas por apenas cinco dias. Por outro lado a comunidade médica reforçava os possíveis efeitos adversos, incluindo doenças cardíacas, cegueira, problemas renais e hepáticos, ideação suicida, confusão mental, entre outros. E para confundir ainda mais, ao mesmo tempo em que as autoridades governamentais da saúde no Brasil abriam as portas para as pesquisas com hidroxicloroquina em doentes portadores da doença, um hospital em Manaus encerrava peremptoriamente sua pesquisa por ter verificado importantes danos cardíacos aos pacientes que receberam o composto.
3 – No início da pandemia, acreditava-se que o alvo preferencial do vírus era apenas o pulmão, causando uma doença respiratória. Com o avanço do número dos casos, verificou-se que o COVID-19 é uma doença sistêmica, com uma característica mais hematológica, podendo também atacar outros órgãos, com destaque para o coração, onde causa uma inflamação que pode ser letal, levando à morte súbita ou o cérebro, podendo causar um AVC. Por isso, diversos médicos recomendam que ao se sentir os primeiros sintomas destes efeitos, o paciente deve procurar um hospital urgentemente. Notou-se no Brasil, em Nova Iorque e em outras cidades importantes, um expressivo aumento de óbitos em casa, pois o paciente evitava ir ao hospital, com medo de ser contaminado com o coronavirus. Com efeito, durante as últimas três semanas estive em um grande hospital privado de São Paulo, por razões não ligadas à COVID-19, que estava completamente deserto. Esperas normais de 2 a 4 horas para fazer exames de imagem e de sangue, se reduziram a um tempo de espera de zero minuto. Vantajoso para os planos de saúde, que estão economizando em exames preventivos e de emergência e cirurgias eletivas, sem dar nenhum desconto para seus associados que, na maioria, tiveram os seus proventos diminuídos ou reduzidos a zero.
4 – Outro ponto de acordo entre os profissionais de saúde, que é evidente, é que o fortalecimento do sistema imunológico é muito importante para que um eventual infectado faça a travessia do período até a cura com sintomas leves ou, até mesmo assintomático. Exposição ao sol por volta do meio dia, por cerca de 15 minutos, alimentação balanceada, redução no consumo do álcool e entre 8 a 9 horas de sono reforçam, sem dúvida, o sistema imunológico. No entanto, muito se fala da superdosagem de vitamina D-3, como um suplemento alimentar com o intuito de reforçar o sistema imunológico durante a crise da COVID-19. Aí entra a discórdia. Enquanto que, em condições normais, sem epidemia, uma dosagem de cerca de 2.000 UI de vitamina D-3 é recomendada quando verificada uma deficiência deste composto, há médicos recomendando para o momento presente, como profilaxia, dosagens de 10.000 UI, ou até maiores. Já a corrente contrária, recomenda que só se tome vitamina D-3 se houver deficiência da mesma no organismo, mesmo nesta crise, já que a superexposição ao composto pode causar a hipercalcemia, que pode gerar perda da função renal e calculose renal, além de perda óssea.
5 – No início da pandemia, era garantido que os infectados e curados não adquiririam novamente a doença nem que seriam agentes transmissores, desde que não houvesse mutação na estrutura do vírus. Hoje, esta afirmação não é mais universalmente aceita, por falta de comprovação científica e devido à ocorrência de alguns casos de reinfecção, gerando mais uma insegurança à população. Gera ainda mais insegurança a baixíssima confiabilidade – até 75% de falsos positivos e falsos negativos – dos testes rápidos de IgG e IgM, respectivamente os testes sorológicos de imunidade e a presença do vírus no sangue do testado. Na minha opinião, e de muitos médicos com quem conversei, melhor não fazer teste algum ao invés de fazer um que não lhe dê segurança no resultado. E aconselham a esperar que estes testes sejam aperfeiçoados e então se submetam a eles.
6 – Outro fator de insegurança é o tratamento estatístico errôneo ou não-significativo dos diversos dados da doença, feitos não só por jornalistas, estatísticos, consultores, mas até mesmo por conceituados órgãos oficiais. Primeiramente, qualquer estatística é tão boa quanto a qualidade dos dados nela inseridos. Os dados coletados diariamente, não apenas no Brasil, mas também em praticamente todos os demais países, não são fiéis, em um grau maior ou menor. No Brasil há uma subnotificação estimada em 1.000% (10 não-notificados para cada um notificado). Mas, a realidade, é que ninguém sabe ao certo, pelo baixíssimo número de testes confiáveis aplicados. Pela mesma razão, o número de infectados curados deve também estar na mesma proporção de subnotificação. E pior ainda, é o caso do número de óbitos, em que há suspeitas por alguns de subnotificação e por outros de sobrenotificação! Outro exemplo, no Brasil – a estatística do Ministério da Saúde, que hoje – dia 27 de abril – aponta que 72% dos óbitos correspondem a pacientes com mais de 60 anos. Por outro lado, frequentemente leio nos jornais e na internet, que no Brasil 50% dos óbitos foram de pacientes com menos de 60 anos. Onde está a realidade? Em Nota Técnica, a Fundação Osvaldo Cruz, instituto federal de renomada competência no setor epidemiológico, publicou estudo na semana passada, divulgado nos principais jornais e telejornais do país, em que “o número de óbitos no Brasil tem dobrado a cada cinco dias, enquanto que nos Estados Unidos ocorre a cada seis dias, e na Itália e França a cada oito….A nossa situação hoje é pior do que a da Itália, Espanha e Estados Unidos. Por isso, o número de mortos está dobrando em um espaço de tempo menor.” Inconformado com estas afirmações, que não me pareciam razoáveis, fiz os cálculos com os dados oficiais de óbitos no Brasil e encontrei que, na véspera da publicação desta Nota, o período quando o número de óbitos dobrava era de sete dias, e não cinco, o que faz muita diferença. É um cálculo aritmético simples, que poderia ter sido confirmado pelos jornalistas que propagaram a Nota, mas que não foi feito.
7 – Ainda no campo da estatística, desta vez mundial, resultados divulgados no dia 23 de abril revelam à primeira vista o quanto o número de óbitos por milhão de habitante é surpreendente em alguns países da Ásia/Oriente Médio/Oceania; América do Norte; e, América do Sul, comparados com os da Europa. A ver:
Europa:
Alemanha – 67 óbitos/MM
Portugal – 82 óbitos/MM
Suécia – 202 óbitos/MM
Holanda – 206 óbitos/MM
UK – 281 óbitos/MM
França – 332 óbitos/MM
Itália – 426 óbitos/MM
Espanha – 485 óbitos/MM
América do Norte:
US – 150 óbitos/MM
Canadá – 59 óbitos/MM
México -7,5 óbitos/MM
América do Sul:
Paraguai – 1,3 óbitos/MM
Uruguai – 3,4 óbitos/MM
Bolívia – 3,4 óbitos/MM
Argentina – 3,7 óbitos/MM
Colômbia – 4,2 óbitos/MM
Chile – 5 óbitos/MM
Brasil – 15,8 óbitos/MM
Peru – 17 óbitos/MM
Equador – 36 óbitos/MM
Ásia, Oriente Médio e Oceania:
Índia – 0,5 óbitos/MM
Hong Kong – 0,5 óbitos/MM
Cingapura – 2 óbitos/MM
Nova Zelândia, 3,3 óbitos/MM
Coreia do Sul – 4,7 óbitos/MM
Israel – 22 óbitos/MM
À primeira vista me surpreendeu a Índia ter um número tão baixo de óbitos por milhão de habitantes, não só pela sua alta densidade demográfica, mas também pelas suas condições precárias de saneamento básico. Da mesma forma, surpreendeu-me Hong Kong, pela altíssima densidade demográfica e por não ter tido distanciamento social, apesar de ter adotado a obrigação de todos usarem máscara, desde o início da pandemia. Surpreende ainda o fato que a doença não se disseminasse acentuadamente nas comunidades de baixa renda do Brasil (favelas), pelo menos até o momento, onde também a densidade demográfica é alta e as condições de saneamento básico são quase inexistentes.
Os dados da Europa, por outro lado, são bastante coerentes, pois os dois países que desenharam eficientes programas de combate à disseminação da COVID-19, implementados desde o início da pandemia, foram a Alemanha e Portugal. Suécia e Holanda subestimaram os efeitos da doença e não promoveram distanciamento social, enquanto UK, França, Itália e Espanha tiveram uma reação lenta à pandemia.
Mas também tem o lado positivo da COVID-19. Agora, posso dizer que sei mais que Sócrates, que só sabia que nada sabia. Hoje, sei onde fica Wuham, o que é um pangolim, que devo lavar as mãos com muita frequência e que, além disso, nada mais sei…
São Paulo, 28 de abril de 2020 – 40º dia de afastamento social.