5 Mai 20 | Jorge Miguel - Treinador de Campeãs do Mundo de Marcha

UMA HISTÓRIA VERÍDICA, DE OUTROS TEMPOS

Naquela tarde de Inverno de 1970 seguia eu em passo lento ao volante de um Land Rover numa ronda da Polícia Militar.
Ao subirmos a avenida Almirante Reis em Lisboa, do meio da multidão alguém gritou: Bandidos!, Cabr..!, Filhos da p..! Vão para a Guiné!
O furriel mandou-me parar a viatura e correu com os dois soldados ao encontro do homem que nos dirigira as ofensas e pediu-lhe a identificação.
Seguimos viagem.
À medida que fomos andando perguntei ao furriel o que pensava fazer. Informou-nos que iria fazer uma participação à Direcção Geral de Segurança (DGS), nome que nessa altura se chamava à antiga PIDE.
Não me diga que o nosso furriel vai querer destruir a vida desse homem?
Não, Miguel.
Tu sabes que todos nós andamos aqui contrariados, mas temos que fazer o que nos mandam. Vamos ter que andar aqui três anos a servir o Estado, mas temos a nossa honra e a nossa dignidade.
Aquele homem não nos conhece, mas ofendeu-nos, e nós estamos apenas a cumprir ordens. Vai ter que apanhar um susto.
Assim foi.
Alguns meses depois daquele incidente, fomos chamados à DGS para sermos testemunhas. Também lá estava o tal homem que nos chamara nomes.
Foi-nos perguntado se tinha sido verdade que ele tinha gritado “Vão para a Guiné” e nós confirmámos. Porém, na sua participação, o furriel não mencionara os nomes ofensivos que nos chamara.
O homem, levou apenas uma repreensão por ter sido incorrecto com a polícia militar e no final, cá fora, despediu-se de nós, agradecido por não termos mencionado tudo aquilo que acontecera.
Também nós os quatro nos sentimos aliviados.

Há cinquenta anos e, tal como os quatro militares que íamos no Land Rover, todos os rapazes tinham que ir à tropa.
O nosso país vivia em ditadura e estava em guerra, uma guerra que durou catorze anos. Muitos deles morreram lá e outros ficaram destruídos, física ou psicologicamente.
Vivíamos um tempo em que quem se manifestasse contra o regime era preso e a PIDE/DGS era temível, não só pelo que fazia aos chamados “desertores” do serviço militar ou aos “agitadores” civis, mas também, porque tinha ao seu serviço um conjunto de pessoas, os informadores, a quem o povo chamava os “bufos”.
Todos tínhamos medo deles e por isso em qualquer lugar onde estivéssemos em grupo, se aparecesse um desconhecido logo alguém fazia um gesto ou dizia baixinho “cuidado”.

Cansados da ditadura e de tanta perseguição aos opositores, os que não pertenciam ao regime, a grande maioria, uniam-se e arranjaram formas de se proteger. E uma delas era evitar os “bufos”.
Tal como nós, os do Land Rover, a maioria das pessoas não concordava com o regime nem com a guerra, mas tinha que aceitar isso, ou ir preso.
Cada um procurava proteger-se e viver a sua vida com honra e dignidade, mas ninguém queria sequer sentir um “bufo” por perto.
Naquele tempo era assim.
A minha geração e os mais velhos do que eu, tinham aprendido à sua custa o valor da amizade e da solidariedade, contra um regime opressor que lhes roubava a liberdade.

Hoje, ao contrário dos seus pais, que terminavam os seus últimos dias em casa, junto aos seus, a maioria dos que ainda estão vivos, ou estão em lares ou para lá caminham. É uma questão de tempo.
E numa altura em que voltamos a estar numa espécie de ditadura e em “guerra” contra um inimigo que não se vê, mas um inimigo, muitos nem na Páscoa tiveram direito a estar com os seus filhos e os seus netos, quando a família foi sempre o mais importante para eles.
Tudo, para “Bem da Nação”, como diziam nesse tempo.
E entretanto, como há cinquenta anos, quem manda, não prescinde das suas festas.
Apenas lhe mudaram as datas.